20.2.12

A rapariga que fuma à janela

O dono do café sabe bem quando deve e não deve montar a esplanada. Dia sim, dia não. Hoje é dia sim e o senhor Manuel faz 87 anos.
A dona Teresinha, dia sim ou dia não - não é quando o frio faz contrair o abdómen - passeia pelo pátio do prédio, algumas dezenas de passos apenas, mas quando o sol se põe já são uns tantos quilómetros. O senhor Manuel faz o mesmo, mas em sentido contrário. Quando se cruzam falam das articulações, das viagens na carrinha do inem - as luzes e o som das sirenes - falam dos (des)empregos dos filhos, dos netos que estão para o estrangeiro, das voltas que a vida deu, dos amores finados. Ela assim: o meu saudoso marido que deus o tem. E ele assim: a minha senhora fazia, a minha senhora acontecia, e de cada vez que o diz olha para o céu.
Hoje sentam-se na esplanada. Ela pede o pingo clarinho, cheio, em chávena escaldada, com adoçante. Ele: carioca de café em chávena de meia-de-leite, bebe-o sem açúcar, a Teresinha guarda os pacotes no bolso. Em voz alta, para desafiar os olhares curiosos, o Manuel diz: ai, ela é muito linda, é muito airosa.
Num mundo coerente, Manuel e Teresinha acertariam os passos, o Manuel mudava-se para a casa da Teresinha ou a Teresinha para a casa do Manuel, poupariam na renda e nas despesas, dormiriam juntos, à vez pagariam os 77 euros às senhoras do apoio domiciliar, e hoje talvez a Teresinha se entusiasmasse e fizesse um bolo de aniversário com os pacotes de açúcar do bolso, o manuel esgueirar-se-ia para arrancar folhas de louro e uma flor no canteiro meio bravio aqui mesmo à frente. Mas a Teresinha, como se viu nos pedidos de café, é um bocado picuinhas.

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